O Pai-Nosso – o certo é dizer dívidas ou ofensas?
É patente que a Oração do Senhor, o Pai Nosso, em toda parte -- nos Evangelhos, em latim, e antigamente em português -- menos na nossa língua nos dias de hoje, diz:
Perdoai as nossas dívidas
Assim como nós perdoamos os nossos devedores
Ao passo que hoje muitos rezam:
Perdoai as nossas ofensas
Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
"Dívidas" substituída por "ofensas" e a expressão "Assim como nós perdoamos nosso devedores", por "Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Isso aconteceu pouco antes do Concílio Vaticano II. Em Missais do ano de 1957 já se encontram aquelas alterações, na linha de algumas modificações litúrgicas iniciadas naquele tempo.
À época, diziam os progressistas de então, que a expressão "dívidas" tinha um sentido muito "capitalista"... assim precisava ser alterado.
Quem nos ditou o Padre Nosso?
Ora, quem nos ditou o Padre Nosso, com "dívidas" e "devedores" foi Nosso Senhor Jesus Cristo e por essa razão jamais deveria ser mudado.
O original em latim é assim:
Pater noster, qui es in caelis:
sanctificetur Nomen Tuum:
adveniat Regnum Tuum:
fiat voluntas Tua,
sicut in caelo, et in terra.
Panem nostrum
cotidianum da nobis hodie,
et dimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nostris.
et ne nos inducas in tentationem;
sed libera nos a Malo.
Traduzindo para o português:
Pai nosso, que estais nos céus,
santificado seja o vosso Nome;
venha a nós o Vosso reino;
seja feita a Vossa vontade,
assim na terra como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje;
e perdoai-nos as nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores;
e não nos deixeis cair em tentação;
mas livrai-nos do mal.
De fato, todos nós temos dívidas com Deus por todos os motivos, tanto no campo natural como no espiritual, tanto pelos bens naturais como nos bens espirituais que Deus nos deu de graça. Além disto, nós temos também dívidas pelas penas temporais decorrentes dos pecados que cometemos, pois o Sacramento da Confissão apaga as penas eternas dos nossos pecados, mas não as temporais que podem ser diminuídas e até apagadas por sacrifícios, orações, ou seja, por boas obras que viermos a praticar. Tais penas ainda podem ser apagadas pelas indulgências que a Igreja concede a determinadas práticas religiosas, podendo ser temporárias ou plenárias.
Ou seja, no pecado, é preciso distinguir culpa e pena. Se dizemos "dívida", fica claro que há uma pena a ser saldada, além da culpa pelo pecado. Pelo Sacramento da Confissão, somos livres da culpa, mas não necessariamente da dívida, até que cumpramos a devida penitência. Quem peca, sem dúvida contrai uma dívida com Deus. Uma dívida que deve ser remida, seja por meio da penitência, da conversão mais perfeita que leva à mudança radical de ações e atitudes ou da reparação do mal cometido. Por este lado, vemos que dizer "dívidas" corresponde melhor ao sentido da oração ensinada pelo Cristo.
E aqui se chega no nó da questão que já pretendia uma "aproximação" à doutrina de Lutero que afirma que só a Fé ser necessária para a salvação, pois somos incapazes de praticar bons atos, além de que todos os nossos pecados já terem sido perdoados pelas morte de Cristo. Portanto, para Lutero, nada de confissões, nada de boas obras e nada de indulgências, que foi o motivo alegado por Lutero para eclodir a sua Reforma.
“Ensinar o Pai Nosso ao Vigário”
Há um provérbio popular que diz: “Ensinar o Pai Nosso ao Vigário”. Vivemos em tempos tão conturbados que este provérbio está se realizando “ipsis litteris”, isto é, nas mesmas letras.
Pois uns dizem:
“Senhor Vigário, o senhor está errado porque está rezando no Pai-Nosso: ‘Perdoai as nossas ofensas’, e não ‘dividas'”.
Já outros dizem:
“Senhor Vigário, o senhor está errado porque está rezando no Pai-Nosso: ‘perdoai as nossas dívidas’, e não ‘ofensas'”.
Todos sabemos que foi Jesus quem ensinou o Pai-Nosso. Por isso é a oração mais perfeita e mais bela que existe. É a Oração do Senhor ou “Oração Dominical”. “Dominus” em latim quer dizer “Senhor”. Quão importante e necessário é que rezemos o Pai-Nosso como Jesus ensinou! Devemos rezá-lo não só com grande devoção mas também como Jesus rezou, portanto, com toda a fidelidade.
“Dívidas” ou “ofensas”?
Dois Evangelistas relatam a passagem em que se narra como Jesus ensinou o Pai-Nosso: São Mateus (6, 9-13) e São Lucas (11, 1-3). Pelos estudos da Exegese parece que Jesus só se utilizou do aramaico, língua falada na Palestina naquela época, aliás muito parecida com o hebraico, idioma original dos judeus. Usava-se também o grego (língua da Ciência e da Filosofia) e o latim, por ser a língua oficial do império romano, ao qual estava sujeita a Palestina na época.
Concluímos com toda probabilidade que Jesus ensinou o Pai-Nosso em aramaico. São Mateus também escreveu seu Evangelho em aramaico. Já São Lucas escreveu o terceiro Evangelho em grego. São Lucas é o único que não pertence a raça judaica: nasceu em Antioquia, era médico e escrevia em grego. Possuía, inclusive, grande conhecimento desta língua, e o seu Evangelho, literária e historicamente, é o mais perfeito.
Quanto ao Pai-Nosso, os relatos de São Mateus e de São Lucas não são iguais: Lucas é mais sucinto. Por isso a Santa Madre Igreja adotou o de São Mateus completado com alguma palavra do de São Lucas. De São Mateus a Igreja adotou o Amém, segundo a Vulgata de São Jerônimo. Agora vamos ao ponto nevrálgico: dívidas ou ofensas?
Além de São Lucas, também São Marcos e São João escreveram em grego. São Jerônimo traduziu os quadro Evangelhos para o latim. Em São Mateus traduz empregando a palavra “debita” que quer dizer: “dívidas”. De São Lucas traduziu “peccata”, que quer dizer: “pecados”. A palavra empregada no aramaico por São Mateus corresponde no grego à palavra “ofeilémata”, que em português quer dizer exatamente “dívidas”.
São Lucas, porém, não empregou esta palavra, mas a substituiu pela palavra grega “martías”, que em português quer dizer exatamente “pecado”. São Lucas assim o fez (e como já dissemos ele tinha um conhecimento profundo do grego) porque “pecado” era mais claro para os leitores gregos, enquanto que a palavra “ofeilémata” (dívidas), sugeria-lhes a ideia de obrigação financeira.
Por sua vez, São Mateus empregou a palavra aramaica que significava dívidas porque no aramaico a noção de pecado exprimia-se correntemente pela palavra “dívida”. E a demonstração mais clara disto é o exemplo do próprio Cristo Jesus, que usou a parábola dos Servos Devedores, para mostrar que, se nós não perdoarmos as ofensas que nossos próximos nos fazem, também Ele não perdoa os nossos pecados. – Logo depois de ensinar o Pai-Nosso, Jesus disse:
“Porque, se vós perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará os vossos pecados. Mas, se não perdoardes aos homens, tão pouco vosso Pai vos perdoará os vossos pecados“. (S. Mateus, 11, 14-15).
Vemos assim que já nas origens, partindo das próprias palavras do Cristo, haviam as duas palavras. Isto explica o porquê das diferenças, – aliás mais superficiais do que reais, – nos diversos idiomas do mundo, ao se rezar o Pai-Nosso.
Em Portugal já se rezava “ofensas” (o Pai-Nosso num livro de 1940 e no ‘Pequeno Manual do Catequista’ do célebre teólogo Perardi, editado em 1955 em LISBOA, na gráfica União, traz o Pai-Nosso em latim ao lado da tradução em Português, e lá está: ‘Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’); na França se rezava “offences”, isto é, “ofensas” (Pai-Nosso num livro de 1914); na Itália se rezava “debiti”, isto é, “dívidas” ( Pai-Nosso num livro de 1960); na Espanha se rezava “deudas”, isto é, “dívidas” (Pai-Nosso num livro de 1928).
No Brasil se rezava “dívidas”, e não “ofensas”. Depois do Concílio Vaticano II, os bispos do Brasil decidiram passar a rezar “ofensas”, como em Portugal.
Nossos pecados são nossas dívidas para com Deus
Devemos verdadeiramente a Deus aquilo a que Ele tem direito e que nós lhe recusamos. Ora, o direito de Deus exige que façamos Sua vontade, preferindo-a à nossa vontade. Ofendemos, portanto, seu direito, quando preferimos nossa vontade à sua, e isto é o pecado. Assim os pecados são nossas dívidas para com Deus. E o Espírito Santo nos aconselha que peçamos a Deus o perdão de nossos pecados e por isso dizemos: “Perdoai as nossas dívidas”.
Sobre estas palavras podemos fazer três considerações. Primeiro, por que fazemos este pedido? Segundo, quando será realizado? Terceiro, que devemos fazer para que Deus realize nosso pedido?
Da primeira, tiramos dois ensinamentos necessários ao homem, nesta vida. Um, que o homem deve sempre temer a Deus e ser humilde. Há quem seja bastante presunçoso para dizer que podemos viver neste mundo de modo a evitar o pecado. Mas isto a ninguém foi dado, a não ser ao Cristo que possui o Espírito em toda a plenitude; e à Bem-aventurada Virgem, cheia de graça e imaculada, da qual dizia Santo Agostinho:
"Desta (Virgem) não quero fazer a menor menção, quando falo do pecado".
Mas a nenhum outro santo foi concedido não cair em pecado ou, ao menos, não incorrer em algum pecado venial. Diz, em sua Epístola, São João:
"Se dissermos que estamos sem pecado, nós mesmos nos enganamos, e não há verdade em nós." (I, 1,8).
E isto tudo é provado pelo próprio pedido. Firmamos, pois, que a todos, santos ou não, convém dizer o Pai Nosso, com o pedido: Perdoai as nossas dívidas. Portanto, cada homem se reconhece e se confessa pecador e indubitavelmente devedor. Se, pois, sois pecador, deveis temer e vos humilhar.
O outro ensinamento é que vivamos sempre na esperança. Ainda que sejamos pecadores, não devemos desesperar. O desespero nos leva a outros e mais graves pecados, como nos diz o Apóstolo (Ef 4, 19):
"Desesperando, entregaram-se à dissolução e a toda sorte de impurezas."
É, pois, muito útil que sempre esperemos. O homem, por mais pecador que seja, deve esperar sempre o perdão de Deus, se seu arrependimento é verdadeiro, se se converteu perfeitamente.
Ora, esta esperança se fortifica em nós, quando pedimos: Pai nosso, perdoai as nossas dívidas.
“Perdoei-te a dívida toda, porque me pediste”
Os hereges Navatini negavam essa esperança, dizendo que aquele que peca, depois do batismo, não alcança a misericórdia. Ora, isto não é verdade, se é verdade o que Cristo diz (Mt 18,32): “Perdoei-te a dívida toda, porque me pediste.”
Assim, em qualquer dia em que pedirdes, podereis obter a misericórdia, se rogardes arrependidos por terdes pecado.
Se, portanto, por esse pedido, nasce o temor e a esperança e todo pecador contrito alcança a misericórdia, concluímos o quanto é necessário fazê-lo.
A culpa e o castigo
É preciso lembrar que, no pecado, são dois os elementos presentes: a culpa, pela qual se ofende a Deus, e o castigo devido pela ofensa.
Ora, a falta é remida pela contrição, se esta é acompanhada do propósito de se confessar e de satisfazê-la. Declara o Salmista (Sl 31, 5): Eu disse: "confessarei ao Senhor contra minha injustiça; e tu me perdoaste a impiedade de meu pecado." Como dissemos, se há contrição dos pecados, com o propósito de confessá-los, basta para obter sua remissão, o pecador não deve desesperar.
Se a contrição do pecado redime a culpa, porque é necessário a confissão ao sacerdote?
A esta pergunta responderemos:
Deus, pela contrição, redime o pecado, mudando o castigo eterno em castigo temporal; o pecador, contrito, fica submetido à pena temporal.
Assim, se o pecador morre sem confissão, não por tê-la desprezado, mas porque a morte o surpreendeu, irá para o purgatório onde, segundo Santo Agostinho, sofrerá muitíssimo.
No entanto, ao vos confessar, o sacerdote vos absolve da pena temporal pelo poder das chaves, ao qual vos submeteis na confissão; pois disse Cristo aos Apóstolos (Jo, 20,22,23):
“Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados e aos que os retiverdes, serão retidos.”
Assim, quando se confessa uma vez, alguma parte da pena é perdoada e do mesmo modo, quando se repete a confissão ou se confessa, tantas vezes, quanto necessário, será totalmente perdoada.
Indulgências
Os sucessores dos Apóstolos acharam um outro modo de remir a pena temporal: pelo benefício das indulgências. Para quem vive na caridade, as indulgências têm o valor que o Papa lhes pode conferir.
Quando os santos fazem boas obras, sem terem pecado, ao menos mortalmente, essas obras são úteis para a Igreja. Do mesmo modo os méritos de Cristo e da bem-aventurada Virgem são reunidos como um tesouro. O Soberano Pontífice e aqueles a quem ele confiou tal cuidado, podem aplicar estes méritos, onde mais houver necessidade.
Assim, pois, os pecados são remidos, quanto à falta, peia contrição, e quanto à pena, pela confissão e pelas indulgências.
Perdoamos os nossos devedores
Quanto à terceira consideração: que devemos fazer para que Deus realize nosso pedido, Deus requer, de nossa parte, que perdoemos ao próximo as ofensas que nos fez. É por isso que nos faz dizer: “assim como nós perdoamos os nossos devedores.” Se agirmos de outra maneira, Deus não nos perdoará.
Diz-nos o Eclesiástico (28, 2-5): Perdoa a teu próximo o mal, que te fez e a seu pedido teus pecados ser-te-ão perdoados. O homem guarda sua ira para com outro homem e pede a Deus remédio? Não tem compaixão de um homem seu semelhante, e pede perdão de seus pecados? Sendo carne, conserva rancor e pede propiciação a Deus? Quem lha alcançará por seus delitos? Perdoai, (Lc 6, 37), e ser-vos-á perdoado.
É por isso que neste quinto pedido do Pai N’osso o Senhor nos põe uma única condição: perdoai o outro. Se assim não fazemos, não seremos perdoados.
Mas poderíamos dizer:
Direi as primeiras palavras do pedido a saber: “perdoai as nossas dívidas”, mas não as últimas: “como nós perdoamos aos nossos devedores”.
Quereis enganar a Cristo? Mas certamente não enganareis. Cristo compôs esta oração e dela se lembra bem; como podeis enganá-lo? Portanto, se dizeis com a boca, ratificai com o coração.
Mas, perguntamos, aquele que não tem o propósito de perdoar seu próximo deve dizer: Assim como nós perdoamos os nossos devedores?
Parece que estaria mentindo, mas não, pois não está rezando em seu nome, mas em nome da Igreja, que não se engana. É por isso que esse pedido foi posto no plural.
Precisamos saber que há dois modos de perdoar o próximo. O primeiro é o dos perfeitos, que leva os ofendidos a procurarem os ofensores, como diz o Salmista (Sl 33, 15):
“Procurai a paz.”
O segundo modo de perdoar é comum a todos, é a obrigação de todos; nada mais é que perdoar os que pedem perdão, como diz o Eclesiástico (28, 2):
“Perdoa teu próximo pelo mal que te fez e a seu pedido teus pecados ser-te-ão perdoados.”
Bem-aventurados os misericordiosos, é o fruto deste quinto pedido. Porque nos leva a ter misericórdia para com o próximo.
Referências:
O Pai nosso, o certo é dizer dívidas ou ofensas. Disponível em: https://afeexplicada.wordpress.com/2017/12/16/o-pai-nosso-o-certo-e-dizer-dividas-ou-ofensas/
Sermão sobre o Pai Nosso. São Tomás de Aquino. Disponível em: http://catolicosribeiraopreto.com/perdoai-as-nossas-dividas-assim-como-nos-perdoamos-aos-nossos-devedores/
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