A Misericórdia de Deus e as Ilusões do Pecador
Ne dixeris: Peccavi, et quid mihi accidit triste? Altissimus enim est patiens redditor — “Não digas: Pequei, e que mal me veio daí porque o Altíssimo, ainda que sofrido, é justiceiro” (Eclo 5, 4)
Sumário. Eis aí uma ilusão comum aos pecadores, a qual fez e ainda faz com que muitos se condenem. Os miseráveis dizem: Deus é misericordioso, e assim como no passado tem sido tão indulgente para conosco, sê-lo-á também no futuro. Consideremos, porém, que o Senhor não é só misericordioso, mas também justo. Por isso, quando estiver cheia a medida dos pecados que ele quer perdoar, faz descer os mais formidáveis castigos. Ah! Quantos daqueles que sempre adiavam a sua conversão, confiados na bondade divina, estão agora queimando no inferno!
I. Escreve um sábio autor que são mais os que são enviados ao inferno pela misericórdia de Deus do que pela sua justiça, porque estes infelizes, contando temerariamente com a divina misericórdia, não deixam de pecar e assim se perdem. Deus é misericordioso; quem o nega? Contudo, quantos não há a quem Deus condena todos os dias ao inferno! Deus é misericordioso, mas é também justiceiro, e por isso se vê obrigado a punir a quem o ofende.
Deus usa de misericórdia; mas a favor de quem? Daquele que o teme: Misericordia eius super timentes se. Misertus est Dominus timentibus se (1) — “A sua misericórdia é para os que o temem. O Senhor se compadeceu dos que o temem”. Quanto àquele que o despreza e abusa da sua misericórdia para mais o desprezar, Deus o trata segundo a sua justiça. E com razão. Deus perdoa o pecado; mas não pode perdoar a vontade de pecar. Diz Santo Agostinho que o que peca com intenção de se arrepender depois do pecado, não é um penitente, senão um zombador de Deus: Irrisor est, non poenitens. Ora, o Apóstolo nos previne que Deus não consente que zombem dele: Nolite errare: Deus non irridetur (2). Seria zombar de Deus o ofendê-lo como e quanto se queira, e depois pretender ir ao paraíso.
Que justiça seria esta? Então, por que Deus se compadeceu de ti, deverá usar sempre para contigo da mesma misericórdia, e nunca te punir? Ao contrário, quanto maiores foram as suas misericórdias para contigo, tanto mais deves recear que deixe de te perdoar, e te castigue enfim, se o ofenderes de novo. Não digas: Pequei, e que mal me veio dali porque o Altíssimo, ainda que sofrido, é justiceiro. Deus tolera, diz o Eclesiástico, mas não tolera sempre. Quando se encheu a medida das misericórdias que decretou fazer a cada pecador, envia-lhe o castigo proporcionado a todos os pecados. Quanto mais esperou que o pecador fizesse penitência, tanto mais rigoroso será o castigo. Coloca-te em espírito às portas do inferno. Ah! Quantos daqueles que sempre adiavam a sua conversão, estão agora ardendo no fogo infernal!
II. Meu irmão, se vês que ofendeste a Deus muitas vezes, sem que te enviasse ao inferno, deves dizer: Misericordiae Domini, quia non sumus consumpti (3) — “É pela misericórdia de Deus que não temos sido consumidos”. Agradeço-Vos, Senhor, por me não terdes condenado ao inferno, como merecia! Pensa que muitos pecadores, menos culpados que tu, foram condenados. Penetrado deste pensamento, procura reparar as ofensas de Deus pela penitência e pelas boas obras. A paciência de Deus para contigo deve-te excitar, não a ofendê-lo de novo, mas a servi-lo e amá-lo com mais fervor, tendo em vista as imensas misericórdias que te fez de preferência a outros.
Meu Jesus crucificado, meu Redentor e meu Deus, aqui tendes aos pés o traidor. Envergonho-me de comparecer diante de Vós. Quantas vezes não escarneci de Vós! Quantas vezes prometi que nunca mais Vos ofenderia! As minhas promessas foram outras tantas infidelidades; pois, quando se me ofereceu ocasião, esqueci-me de Vós, e voltei-Vos novamente as costas. Agradeço-Vos por não me terdes até agora enviado ao inferno e permitirdes chegar-me a vossos pés, iluminando-me e convidando-me ao vosso amor. Ó sim, quero amar-Vos, meu Salvador e meu Deus, e não quero mais desprezar-Vos. Por bastante tempo me tendes aturado; vejo que não me podeis aturar mais. Ai de mim, se depois de tantas graças tornasse a ofender-Vos!
Senhor, estou resolvido a mudar de vida, e quero amar- Vos na proporção que Vos ofendi. O que me consola é ter de tratar com uma bondade infinita. Sobre todos os males me pesa haver-Vos assim desprezado; para o futuro prometo-Vos todo o meu amor. Perdoai-me pelos merecimentos da vossa Paixão; esquecei as injúrias que Vos fiz, e dai-me a força de Vos ser fiel no resto da minha vida. Amo-Vos, meu soberano Bem, e espero amar-Vos sempre. Ó meu Deus amado, não me quero mais separar de Vós. Ó Mãe de Deus, Maria, ligai-me a Jesus Cristo, e obtende-me a graça de nunca me afastar dos seus pés: em vós confio.
Referências: (1) Sl 102, 11.13. (2) Gl 6, 7. (3) Lm 3, 22.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até à Undécima semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 414-417)
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