A pena da perda de Deus é o que faz o inferno
Iniquitates vestrae diviserunt inter vos et Deum vestrum – “As vossas iniquidades fizeram uma separação entre Vós e vosso Deus” (Is 59, 2)
Sumário. A malícia do pecado mortal consiste no desprezo da graça divina e na perda voluntária de Deus, o Bem supremo. Com toda a justiça, pois, a maior pena do pecador no inferno é tê-lo perdido, sem esperança de O tornar a achar. Se quisermos ter uma garantia de não incorrermos em tamanha desgraça, demo-nos inteiramente e sem reservas ao Senhor. O que não se dá inteiramente a Deus ou o serve com tibieza, corre grande risco de O perder para sempre.
I. A gravidade da pena deve corresponder à gravidade do delito. Os teólogos definem o pecado mortal por estas duas palavras: aversio a Deo — “aversão de Deus”. Eis, pois, em que consiste a malícia do pecado mortal: consiste no desprezo da graça divina e na perda voluntária de Deus, o Bem supremo. Pelo que com toda a justiça a maior pena do pecador no inferno é o ter perdido a Deus.
São grandes as demais penas do inferno: o fogo que devora, as trevas que obcecam, os uivos dos condenados que ensurdecem, o mau cheiro que faria morrer aqueles desgraçados se pudessem morrer, a estreiteza que os oprime e lhes tolhe a respiração; mas todas estas penas nada são comparadas com a perda de Deus. No inferno os réprobos choram eternamente, mas o objeto mais amargoso do seu choro é o pensar que perderam a Deus pela sua culpa.
Ó Deus, que grande bem perderam eles! Durante esta vida os objetos que nos rodeiam, as paixões, as ocupações temporais, os prazeres dos sentidos, as contrariedades não nos deixam contemplar a beleza e bondade infinita de Deus. Mas uma vez que a alma sai do corpo, reconhece logo que Deus é um bem infinito, infinitamente formoso, e digno de amor infinito. E sendo que foi criada para ver e amar esse Deus, quisera logo elevar-se a Ele e com Ele unir-se. Como, porém, está em pecado, acha levantado um muro impenetrável, quer dizer, o pecado mesmo que lhe fecha para sempre o caminho para Deus: As vossas iniquidades fizeram uma separação entre vós e o vosso Deus.
— Meu Senhor, graças Vos dou, porque não me foi ainda fechado este caminho, como tinha merecido, e porque posso ainda ir para Vós. Peço-Vos, não me repilais! Meu Jesus, com Santo Inácio de Loyola Vos direi: Aceito toda a pena, mas não a de ser privado de Vós.
II. Se quisermos ter uma garantia de que não perderemos o nosso Deus, consagremo-nos inteiramente a Ele. O que não se dá todo a Deus corre sempre o risco de Lhe virar as costas e de O perder. Uma alma, porém, que resolutamente se desapega de todas as coisas e se dá toda a Deus, não O perde mais; porquanto, Deus mesmo não consentirá que uma alma que se Lhe deu de todo o coração Lhe volte as costas e O perca. Pelo que um grande Servo de Deus dizia que, em lendo-se a queda de alguns que primeiro levaram vida santa, se deve concluir que eles nunca se deram a Deus com todas as véras.
— Demo-nos, pois, ao Senhor sem reserva e roguemos-Lhe sempre pelos merecimentos de Jesus Cristo que nos livre do inferno. Especialmente deve pedir isso aquele que na sua vida já perdeu a Deus por algum pecado grave.
Ai de mim, ó Senhor, que pelo desprezo da vossa graça mereci estar para sempre separado de Vós, meu Bem supremo, e odiar-Vos para sempre. Agradeço-Vos o me haverdes suportado quando estava na vossa inimizade: se então tivesse morrido, que seria de mim? Mas já que me prolongastes a vida, fazei que dela nunca me sirva para Vos ofender de novo, mas unicamente para Vos amar e para chorar os desgostos que Vos dei.
Meu Jesus, d’oravante sereis Vós o meu único amor; e o meu único temor será o de Vos ofender e de me separar de Vós. Nada, porém, posso, se não me ajudardes. Prendei-me sempre mais a Vós pelos laços de vosso santo amor; reforçai as santas e doces correntes de salvação, que me liguem mais e mais convosco. Pelos méritos de vosso Sangue espero que me ajudareis para ser sempre vosso, ó meu Redentor, meu amor, meu tudo: Deus meus et omnia.
— Ó grande Advogada dos pecadores, Maria, ajudai um pecador que se recomenda a vós e em vós confia.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 324-326)
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