Da Mortificação Interior
Qui autem sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis – “Os que são de Cristo, crucificaram a carne com os vícios e concupiscências” (Gl 5, 24)
Sumário. É certo que as paixões, dirigidas segundo a razão e a prudência, não somente não causam prejuízo, senão antes trazem proveito à alma. Ao contrário, não sendo bem dirigidas causam ruínas irreparáveis porque escurecem o espírito e não permitem ver nem o bem nem o mal. Eis porque os mestres da vida espiritual recomendam tanto a mortificação interior. Se não quisermos ser dominados pelas nossas paixões, indaguemos qual seja a nossa paixão dominante e esforcemo-nos para a subjugar, lembrando-nos, porém, de que o melhor meio para sermos bem sucedidos é a oração.
I. As paixões, por natureza, não são más nem nocivas, e, quando dirigidas conforme a razão e a prudência, não somente não trarão prejuízo, senão proveito à alma. Se, ao contrário, não são bem dirigidas, causam ruínas irreparáveis para o que as segue; pois que escurecem a verdade e não permitem ver o que seja bom e o que seja mau. Por isso o Eclesiástico rogava a Deus que o livre de uma alma escrava das paixões: Animae irreverenti et infrunitae ne tradas me (1) – “Não me entregues a uma alma sem respeito e sem recato”.
Eis em que consiste propriamente a mortificação interior, tão recomendada pelos mestres da vida espiritual: em regular e moderar os movimentos da alma. Muitos põem toda a sua diligência na compostura exterior, no porte modesto e respeitoso, ao passo que no coração conservam afetos pecaminosos contrários à justiça, à caridade, à humildade ou à castidade. São semelhantes aos Fariseus, hipócritas depravados, e em vez de desarraigarem os vícios, encobrem-nos com o manto da devoção. Mas, ai deles! De que serve, pergunta São Jerônimo, abster-se de alimentos e guardar o coração cheio de orgulho? Abster-se de vinho e ficar fora de si pela ira?
Notemos bem que todas as más paixões nascem do amor próprio. É este o inimigo principal que nos ataca e devemos vencê-lo pela abnegação própria, segundo o que ensina Jesus Cristo: Abneget semetipsum (2) – “Renuncie a si próprio”. Enquanto não expulsarmos do coração o amor próprio, não pode entrar nele o amor de Deus. – Dizia a Bem-aventurada Angela de Foligno que tinha mais medo do amor próprio que do demônio, porque o amor próprio tem mais força do que este para nos fazer cair. E Santa Maria Magdalena de Pazzi acrescenta: O nosso pior traidor é o amor próprio; faz como Judas: entrega-nos com um beijo. Quem o vence, vence tudo; quem não o vence, está perdido.
II. Colhamos como fruto desta meditação o indagarmos qual seja a nossa paixão dominante, e empregarmos todos os meios para a dominar, visto que deste triunfo depende toda a nossa salvação. Procuremos, além disso, segundo o conselho de Cassiano, dar a nossas paixões outro objeto, de sorte que de viciosas se tornem santas. Um é propenso à ira; pois mude o objeto e vire a sua iracundia ao ódio do pecado, que mais dano lhe pode causar do que todos os demônios do inferno. Outro é propenso a amar pessoas de boa presença; volte o seu amor para Deus, em que se reúnem todas as qualidades amáveis. – Ah! Elevemo-nos acima da terra, e apliquemo-nos a amar com todas as forças o Bem supremo, que nos fez para si, e nos espera lá, no céu, para nos fazer felizes pela sua própria glória.
O melhor remédio, porém, contra as paixões é recomendarmo-nos a Deus, afim de que nos livre delas. Quanto mais nos molestarem as paixões, tanto mais devemos multiplicar as orações. Nesses instantes, de pouco servem os raciocínios, pois que a paixão escurece tudo; quanto mais se refletir, tanto mais sedutor se nos afigurará o objeto que a paixão nos sugere. Então não há outro remédio senão o recurso a Jesus Cristo e a Maria Santíssima, dizendo e repetindo: Domine, salva nos, perimus (3) – “Senhor, salvai-nos, senão perecemos”.
Não permitais, Senhor, que me aparte de Vós. – Ó santa Mãe de Deus, refugio-me debaixo da vossa proteção: Sub tuum praesidium confugimos, sancta Dei Genitrix.
Sim, meu Deus, é isso que proponho fazer sempre. Vós, porém, que conheceis o meu nada, dai-me força para executar esta minha resolução. Fazei-o pelos merecimentos de Jesus Cristo e pela intercessão da minha querida Mãe, Maria.
Referências:
(1) Eclo 23, 6 (2) Mt 16, 24 (3) Mt 8, 25
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 61-63)
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