Da pureza de intenção
Omne, quodcumque facitis in verbo aut in opere, omnia in nomine Domini Iesu Christi, gratias agentes Deo et Patri per ipsum – “Tudo quanto fizerdes por palavra ou por obra, tudo seja em nome do Senhor Jesus Cristo, rendendo graças por Ele a Deus Pai” (Cl 3, 17)
Sumário. Nunca deixemos de dirigir de manhã a Deus todas as ações do dia; e procuremos renovar a boa intenção ao menos no começo das ações principais. É certo que as ações, boas em si mesmas, porém feitas para granjear louvores humanos, para satisfazer ao amor próprio ou por qualquer motivo humano, são como que postas num saco furado. Ao contrário, a pureza de intenção faz preciosas as ações mais insignificantes, porquanto toda obra feita para Deus é verdadeiro ato de amor divino.
I. A pureza de intenção consiste em fazer todas as ações com o único intuito de agradar a Deus. Jesus Cristo disse: “Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso. Mas, se o teu olho for mau, todo o teu corpo estará em trevas.” Segundo a explicação de Santo Agostinho, o olho simples significa a intenção pura de dar gosto a Deus: o olho tenebroso significa a intenção má, quando se faz uma coisa por vaidade, ou para própria satisfação. Ora, segundo a intenção for boa ou má, a obra será também aos olhos de Deus boa ou má. — Poderá haver obra mais sublime do que o dar a vida pela fé? Todavia diz São Paulo que aquele que morre com outro intuito que não a vontade de Deus, nenhum proveito tem de seu martírio. Ora, se não aproveita nada o martírio, não sendo sofrido por amor de Deus, que utilidade terão todas as pregações, todos os livros e todos os trabalhos dos operários sagrados e todas as austeridades dos penitentes, quando feitos para granjear louvores humanos ou para contentar o amor próprio?
Disse o profeta Ageu, que as obras, embora santas por natureza, mas não feitas para Deus, são postas in sacculum pertusum (1), em um saco roto, quer dizer, que se perdem todas e nada resta, Ao contrário, toda a ação, por insignificante que seja, mas feita para o agrado de Deus, tem muito mais valor do que muitas obras grandiosas feitas sem reta intenção. — Lemos em São Marcos que a viúva pobre não deitou no cofre das oferendas do templo senão duas pequenas moedas, mas o Salvador dela disse: Vidua haec pauper plus omnibus misit (2) — “Esta viúva pobre deu mais do que todos os outros”. Explica São Cypriano que ela deu mais do que os outros, porque deu as duas pequenas moedas com a intenção pura de agradar a Deus.
Para conhecer se uma ação foi feita com intenção reta, um dos melhores sinais é o não perturbar-se quando não se alcança o intento desejado. Outro sinal é se depois da obra feita se fica contente e tranquilo, posto que outros murmurem ou a desaprovem. — Pelo mais, se acontecer que o que fez bem é louvado, não deve inquietar-se pelo medo da vanglória. Se tal pensamento surgisse na mente, deveria desprezá-lo e dizer com São Bernardo: Nec propter te coepi, nec propter te desinam: “Não é para ti que comecei, nem para ti a quero interromper”.
II. A intenção de adquirirmos uma glória mais alta no céu é boa; mas a mais perfeita é a de agradar ao Senhor. É esta intenção que fere o Coração de Deus de amor para conosco, assim como disse a Esposa sagrada: Vulnerasti cor meum in uno oculorum tuorum (3) —“Feriste meu Coração com um dos teus olhos”. Pelo que o Apóstolo deu também a seus discípulos este conselho: Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, tudo fazei para glória de Deus (4). — Dizia a Venerável Beatriz da Encarnação, primeira filha de Santa Teresa: “Nenhum valor terrestre pode igualar o de qualquer obra feita para Deus, posto que mais insignificante.” Com razão, pois que todas as obras feitas para Deus são outros tantos atos de amor divino. A pureza de intenção faz preciosas as ações mais desprezíveis; como sejam: o comer, o lavrar a terra, mesmo o divertir-se, com tanto que sejam feitas por obediência e para agradar a Deus.
Devemos, portanto, desde pela manhã dirigir a Deus todas as ações do dia. E será de grande vantagem renovar essa intenção no começo de todas as ações, ao menos das mais importantes, por exemplo, antes da oração, da comunhão, da leitura espiritual; paremos um instante no começo destas ações, como fazia certo solitário, que antes de principiar qualquer ação parava um pouco e levantava os olhos ao céu. Perguntado por que razão assim fazia, respondeu: Procuro acertar o tiro.
Ó meu Jesus, quando começarei a Vos amar com todas as veras? Ai de mim! Se entre as minhas ações, mesmo boas, procuro uma feita unicamente para Vos agradar, não a posso achar. Tende piedade de mim! não permitais que eu Vos sirva tão mal até a minha morte. Ajudai-me, afim de que o resto de minha vida seja empregado unicamente no vosso serviço e no vosso amor. Fazei com que eu suporte tudo para Vos dar gosto, e faça tudo somente para Vos agradar; eu vo-lo peço pelos merecimentos da vossa paixão. — Ó minha grande advogada, Maria, obtende-me esta graça pela vossa intercessão.
Referências:
(1) Ag 1, 6 (2) Mc 12, 43 (3) Ct 4, 9 (4) 1Cor 10, 31
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 183-185)
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