Loucura dos pecadores
Sapientia enin huius mundi stultitia est apud Deum – “A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1 Cor 3, 19)
Sumário. Quem crê na vida futura e apesar disso vive no pecado e longe de Deus, merece ser metido num hospício de doidos. Com efeito, que loucura, renunciar ao paraíso e merecer o inferno por um vil interesse, por um pouco de fumo, por um prazer vergonhoso! O pior porém, é que o número de semelhantes loucos é infinito, e no mesmo tempo que são tão loucos, eles se têm por homens sábios e prudentes. Irmão meu, serás tu por ventura do número desses infelizes? I. O Bem-aventurado João de Ávila quisera dividir o mundo em duas prisões, uma para os que não creem na vida futura, e outra para os que creem, mas vivem no pecado e longe de Deus. Acrescentava que estes deviam ser metidos num hospital de doidos. A maior miséria e desgraça destes infelizes é que se julgam sábios e prudentes e são os mais cegos e loucos que pode haver. E o pior é que o seu número é infinito: Et stultorum infinitus est numerus (1). São loucos, uns pelas honras, outros pelos prazeres, outros pelas criaturas abjetas desta terra.
Atrevem-se a apodar de doidos os santos que desprezam os bens do mundo para obter a salvação eterna e o verdadeiro bem, que é Deus. Chamam loucura sofrer os desprezos e perdoar as injúrias: loucura o privar-se dos prazeres dos sentidos, o praticar as mortificações; loucura renunciar às honras e riquezas; amar a solidão, a vida humilde e oculta. Mas não veem que Deus chama a sabedoria deles loucura:
Sapientia enin huius mundi stultitia est apud Deum — “A sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”
Ah! Um dia reconhecerão evidentemente a sua loucura. Quando, porém? Quando já não houver mais tempo e então exclamarão com desespero: Nos insensati! (2) Ah! Como havemos sido insensatos! Considerávamos loucura a vida dos santos, mas hoje reconhecemos que fomos nós os insensatos. Ecce quomodo computati sunt inter filios Dei — Vede como são agora admitidos no número dos felizes filhos de Deus, e têm a sua felicidade entre os santos, felicidade que será eterna e que os tornará para sempre bem-aventurados; ao passo que nós ficamos no número dos escravos do demônio, a arder neste abismo de tormentos por toda a eternidade. Ergo erravimus — “Enganamo-nos”: tal será a conclusão de seus lamentos. Enganamo-nos, querendo fechar os olhos à luz divina, e o que nos faz ainda mais infelizes, é sabermos que nosso erro é e será sempre sem remédio, enquanto Deus for Deus!
II. Que loucura não é perder a graça de Deus por um vil interesse, por um pouco de fumo, por um prazer efêmero. O que não faz um vassalo para ganhar as boas graças de seu soberano? E então por uma miserável satisfação perderemos o bem supremo que é Deus, perderemos o paraíso, perderemos até a paz neste mundo deixando entrar na alma o pecado, que a atormentará incessantemente com os remorsos, e condenar-nos-emos voluntariamente a uma desgraça eterna? — Provarias qualquer prazer proibido, se houvesses de ficar com a mão queimada ou encerrado num túmulo por um ano? Cometerias tal pecado, se houvesses de perder por ele cem escudos? Não há dúvida que crês e sabes que pecando perdes o paraíso e a Deus e que para sempre serás condenado ao fogo, e apesar de tudo te atreves a pecar?
Ó Deus de minha alma, que seria de mim nesta hora, se não me tivésseis feito tão contínuas misericórdias? Estaria no inferno entre os insensatos, do número dos quais tenho sido. Agradeço-Vos, Senhor, e rogo-Vos que não me abandoneis na minha cegueira. Merecia ser privado de vossa luz, mas vejo que a vossa graça ainda não me abandonou. Ouço que ela me chama com ternura, e me convida a pedir-Vos perdão e a esperar de Vós grandes coisas, apesar das graves ofensas que Vos fiz.
Sim, meu Salvador, espero que me recebereis por filho. Não sou digno de ser chamado assim, porque Vos ultrajei tantas vezes na vossa presença. Pater, peccavi in coelum et coram te; non sum dignus vocari filius tuus (3) — “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho”. Sei, porém, que andais em procura das ovelhas tresmalhadas, e que é para Vós uma consolação abraçar os filhos perdidos. Meu querido Pai, arrependo-me de Vos ter ofendido: prostro-me diante de Vós, abraço os vossos pés, e não me levantarei, enquanto não me concederdes o perdão e a vossa bênção: Non dimittam te, nisi benedixeris mihi (4). Abençoai-me, meu Pai, e que a vossa bênção me inspire uma grande dor de meus pecados e um grande amor por Vós.
— Ó Maria, se Deus é meu Pai, sois vós minha Mãe. Abençoai-me também vós e obtende-me a santa perseverança.
Referências: (1) Ecle 1, 15 (2) Sb 5, 4 (3) Lc 15, 18 (4) Gn 32, 26
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 213-216)
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