Os Dois senhores e as Almas Tíbias
14º Domingo depois de Pentecostes
Nemo potest duobus dominis servire – “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6, 24)
Sumário. As almas tíbias parecem que querem servir ao mesmo tempo a Deus e ao mundo; a Deus, preservando-se de culpas graves; ao mundo, não fazendo caso das culpas veniais deliberadas. Escutem, porém, estas pobres iludidas, o que diz Jesus Cristo no Evangelho de hoje: “Ninguém pode servir a dois senhores: porque, ou há de amar um e odiar o outro, ou se apagar a um e abandonar o outro”. É como que dizer que cedo ou tarde acabará por cair em culpas graves. Além disso, o desgraçado levará vida infeliz; porque ficará privado tanto dos prazeres do mundo como das consolações celestiais.
I. Quem dera que esta máxima de Jesus Cristo fosse bem compreendida por aqueles que vivem na tibieza voluntária. Os ingratos repartem entre Deus e as criaturas o coração que lhes foi dado para amar a Deus só e ainda é muito pequeno para o amar devidamente. Com outras palavras, eles são tão insensatos que se persuadem que podem servir ao mesmo tempo a dois senhores, tão opostos entre si, como o são Deus e o mundo. Querem servir a Deus, preservando-se de pecados graves; e ao mundo, não fazendo caso das culpas veniais, em que caem por hábito e com advertência.
Tais almas dizem: Os pecados veniais não nos fazem perder a graça divina; por poucos que sejam, impedir-nos-ão de santificarmos; mas assim mesmo nos salvaremos, e é quanto basta. – Mas o que fala assim, ouça o que assegura Santo Agostinho: Ubi dixisti, satis, ibi periisti – Dizes que basta que te salves? Sabe, porém, que desde que disseste basta, começou a tua perdição; porquanto a alma nunca fica no lugar onde caiu, mas vai sempre abismando-se mais e mais. Santo Isidoro dá-nos disso a razão, porque com justiça Deus permite que os que não fazem caso dos pecados veniais, em castigo do seu desleixo e do pouco amor que lhe têm, caiam afinal em pecado mortal.
Demais, é natural que o hábito dos pecados leves incline a alma aos pecados graves, exatamente como certos leves mas repetidos incômodos da saúde corporal acabam por fazer a pessoa cair numa enfermidade mortal e levá-la ao túmulo. – Em suma, persuadam-se bem as almas tíbias, que cedo ou tarde se verificará também nelas a palavra de Jesus Cristo:
“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de amar a um e odiar ao outro, ou se apegar a um e abandonar o outro.”
II. Mas, além do grave risco que correm as almas tíbias de caírem em pecado mortal, têm também uma vida infeliz na terra, sem jamais acharem a paz nesse estado. Sim, pois que por um lado estão privadas dos prazeres do mundo; por outro, não podem saborear as consolações espirituais. Justo é que, assim como elas são avarentas para com Deus, Deus seja igualmente para com elas. – Tinha, pois, Santa Teresa razão de dizer: “Do pecado deliberado, por pequeno que seja, livre-te Deus.” E alhures: “Aprouvesse a Deus que tivéssemos medo, não do demônio, mas de todo o pecado venial, que nos pode prejudicar mais do que todos os demônios do inferno.”
Meu amabilíssimo Jesus, eu sou uma daquelas almas tíbias que, de encontro ao vosso ensino, tive a pretensão de servir a dois senhores, inteiramente opostos, como o sois vós e o mundo. Graças vos dou, meu Senhor, por não me haverdes ainda expulso de vosso serviço, conforme tinha merecido. Em vez disso fazeis-me ouvir a vossa voz, que me convida ao vosso amor: Praebe, fili mi, cor tuum mihi (1) – “Meu filho, dá-me teu coração“. Animado pela vossa bondade, proponho ser de hoje em diante todo vosso, e amar-Vos de todo o meu coração.
Amo-vos, ó meu soberano Bem, amo-Vos, meu Deus, digno de amor infinito; e porque Vos amo, arrependo-me de todas as minhas ingratidões para convosco e protesto antes querer morrer do que tornar a Vos dar desgosto. Vós, porém, ó meu Jesus, pelo amor de Maria Santíssima, abençoai este meu propósito e dai-me a graça de ser fiel. “Guardai-nos, Senhor, com vossa perpétua clemência: e pois que a humana fraqueza, sem vossa assistência, cai a cada passo, fazei, com vossos auxílios, que eu fuja do que é nocivo e tenda sempre ao que me é saudável.” (2)
Referências:
(1) Pv 23, 26 (2) Or. Dom. curr.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 58-61)
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